“O Senhor dos Anéis» é fundamentalmente uma obra religiosa e
católica” escreve Tolkien na Carta de 2 de Dezembro de 1953 ao Padre Robert
Murray: notícia nada surpreendente se for considerada a vida do seu autor,
plasmada por uma profunda fé herdada da sua mãe, convertida da religião
protestante da sua família de origem — o pai, educado numa escola metodista —
ao catolicismo, escolha que pagou com em vida, sendo repudiada e abandonada à
miséria com o desprezo dos seus familiares. "
Esta é a justa lente com a qual observar e compreender toda a
obra de Tolkien. Os textos de Paolo Gulisano, de Andrea Monda e Saverio
Simonelli sobre Tolkien, demonstram que a obra completa de Tolkien e não só «O
Senhor dos Anéis», é um hino à Graça com referência contínua à Sagrada
Escritura.
Nos textos de Tolkien
do princípio ao fim surge como pensamento fundamental o sentido da vida e da
escritura: o famoso conceito de subcriação, que vê o homem chamado por Deus na
obra da formação da realidade, evidentemente com distinções: o subcriado do
homem é o mundo dos mitos, dos acontecimentos que remetem para a mensagem
completa.
Se Deus, «escrevendo» a Bíblia deu vida àqueles
acontecimentos que são narrados — a Palavra fez-se carne! — o homem só pode
«criar» mundos que permanecem prisioneiros da estrutura. Este é, segundo o
nosso autor, o contributo que o homem pode oferecer a Deus na obra da criação.
Há quem compare Tolkien a Manzoni (Monda e Simonelli) mas quem o sinta mais
próximo de Dante: pois ambos, tiveram intenção de conferir o sentido anagógico
ao seu trabalho: não símbolo, mas verdadeira experiência que remete para outro
significado os acontecimentos. Não uma criação que remete para o outro, assim
como o faz a Divina Comédia na intenção de Dante.
J.R.R.Tolkien |
Olhando para a obra cinematográfica, se ao lado da trilogia
podemos ver a presença dos dois últimos versos do Pai Nosso, o centro de toda a
história pode ser expresso citando a conclusão da liturgia da palavra da Missa
em honra de Sta. Inês — 21 de Janeiro — que recita: «Ó Deus omnipotente e
eterno que escolhes as criaturas mais fracas para confundir o poder do mundo.»
Nesta frase está condensada a mensagem de Tolkien: a confiança ilimitada no
Deus católico e no seu projecto sobre a história, a exaltação dos humildes, a
loucura que, como exclama Gandalf durante o conselho de Elrond, será o manto (a
capa) aos olhos dos inimigos que assim confunde o poder do mundo. Palavras
similares àquelas contidas no Magnificat : «exaltou a humildade da sua serva —
derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.»
Humildes e frágeis: esta parece ser a fundamental e decisiva
diferença entre o valioso universo Tolkiano e o divertido, mas também
superficial mundo do Harry Potter, onde os bons são esplendidamente bons e os
maus perversamente maus, divisão maniqueia. Na obra de Tolkien todos, como
Gollum, podem ser resgatados e onde todos, como Frodo, como Aragon, como
Gandalf, são constantemente tentados e não são capazes de ultrapassar
necessariamente a tentação. Só os orcs, imitação do homem, criados da lama, e
os emissários de Sauron são apresentados como impermeáveis à salvação: como os
demónios e Satanás, segundo o que nos diz o Catecismo da Igreja católica.
Todo o «Senhor dos Anéis» é atravessado do sentido da fragilidade
humana que só em Deus encontra cumprimento e apoio. Com efeito, como fez já
notar Emília Lodizioni no primeiro e imprescindível «convite à leitura de
Tolkien», o traço saliente deste romance, como de todos os que escreveu
Tolkien, é a renúncia. A vitória sobre o mal só é possível renunciando, com
liberdade, a qualquer coisa de querido. Se é bem notório que é a própria
renúncia ao anel que permitirá salvar a Terra Média, são muitos outros os
exemplos desta renúncia no texto, que se inicia com a renúncia de Bilbo ao seu
precioso tesouro que Gandalf confiará a Frodo. O próprio Frodo renuncia à vida
tranquila para assumir o encargo de conduzir ao término uma missão destinada
aos heróis «institucionais» Aragon e Gandalf. Gandalf primeiro e Galadriel
depois renunciam a possuir o anel que é oferecido a Frodo, superando a prova —
e Tolkien utiliza em entrelinhas quase esse vocábulo — como Cristo no deserto
afasta o demónio que lhe oferece a posse de todos os reinos da terra. Mas há
outros argumentos que encontram a sua raiz na Escritura e na fé católica.
«Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus»
(Rm.8,25). Assim, de facto acontece no livro. Situações que parecem trágicas,
extremamente negativas, demonstram-se no entanto preciosas para produzir o bem:
se Gandalf o grisalho não «morresse» em Moria, não podia renascer como Gandalf
o branco (e aqui recorda a palavra de Jesus: — Se o grão de trigo não morre —
Jo.12,24). Sem o ataque de loucura que atinge Boromir e o leva a arrebatar o
anel a Frodo e sem o assalto dos orcs o anel não chegaria a Est. Se Pepin e
Merry não fossem raptados pelos orcs não chegariam à floresta de Fangar, se
Gollum não tivesse fugido dos elfos e não tivesse traído os hobbits o anel não
teria sido deitado na fornalha ardente.
A figura do verdadeiro protagonista Frodo é traçada sob a
figura do Santo, como Abraão a ponto de deixar tudo, a casa, a riqueza, a
posição, para ir para a desolação; Moisés, o profeta que se sente inadequado
para a missão confiada, e o próprio Jesus, do qual condivide a profunda e forte
humildade e vontade de levar ao termo a missão confiada a custo com a própria
vida. Como escreve Bertoni, na sua tese de doutoramento apresentada na
Universidade de Bologna em 1995: «Frodo respondeu a uma chamada; se bem que
quisesse evitá-la e não soubesse nada, de facto, de armas e de guerras». E uma
vez chamado não volta mais atrás. Moria, que atravessa o primeiro livro, é o
nome do monte sobre o qual Abraão é chamado a sacrificar Isaac (Gen.22,1).
Mória é na realidade o lugar sobre o qual é constituída, séculos depois a
cidadede Ieru-Salem, cujo rei ao tempo do patriarca é o famoso Melquisedec, rei
de Salém. Uma das referências de Moria é o Calvário, onde um outro sacrifício
será oferecido: o de Nosso Senhor Jesus Cristo. É em Mória que Gandalf morrre
para depois ressurgir: um acaso? Penso que não. Uma indicação muito marcada que
remete para o verdadeiro sentido do sacrifício.
Também a comunhão dos santos está presente no livro: é a
piedade que Bilbo mostra sobre Gollum, não obstante todo o percurso do mal,
inspira-lhe compaixão que permite que a missão seja cumprida. O esforço que as
personagens fazem na sua batalha com as forças de Sauron sustêm Frodo,
ajudando-o a levar o peso do anel que aumenta conforme se aproxima do Monte Fato.
A mensagem de que o mal corrompe com a sua convivência está presente: o anel
que representa o pecado, corrói todos os que têm contato, não só Gollum, que o
possui há muito, ficando uma imagem do que era, mas o próprio Bilbo e Frodo são
alvo dos ataques e sobrevivem só em função de um esforço da livre vontade.
Frodo não chega a perder a razão, também a capacidade de entender, e querer, no
momento em que se encontra a poder deitar na voragem do Monte Fato o anel.
O anel encerra as três concupiscências que fala S. Paulo: dos
olhos, da carne e soberba de vida. Nota-se em particular na vivência de Boromir
o seu desejo mórbido de apoderar-se do anel, o que o leva a agredir Frodo
pronunciando palavras que podem ser remetidas às três concupiscências
referidas. O olhar capaz de desvelar os pensamentos do coração, que Galadriel,
a mulher de Lothorien apresenta, faz pensar na imagem que Nosso Senhor e remete
ao olhar de Jesus como Palavra que penetra o mais fundo e íntimo do nosso ser
(Heb.4,12). A parábola dos talentos ressoa neste esplêndido diálogo entre Frodo
e Gandalf: «Desejei tanto que tudo isto não acontecesse nos meus dias»,
exclamou Frodo. «Também eu» anuiu Gandalf, «como todos os que vivem estes
acontecimentos. Mas não nos cabe a nós escolher. Tudo o que podemos decidir é
como dispor do tempo que nos é dado.»
O importante é fazer bom uso do tempo, que foge das mãos e
que, para quem tem critério cristão, vale mais que ouro, porque representa uma
antecipação da glória que Deus nos concederá. A Graça está presente em cada
página do romance e revela-se no momento decisivo: ninguém pode arrogar-se no
mérito de ter salvo a Terra Média, pois todos ofereceram o seu contributo,
todos os protagonistas da obra levam os seus pães e os seus peixes, mas nenhum
deles pode multiplicá-los. É a Graça que se serve do hobbits e dos homens, como
dos elfos e restantes, que se alimenta da piedade de Bilbo e da misericórdia de
Frodo, do heroísmo de Sam e da valentia de Aragon, a jogar a última carta.
Tradução do
italiano por Pe. Marco Luís.
Fonte: Valinor / Documentos da Hora da Esperança
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